sexta-feira, 15 de maio de 2020

Métodos e processos de interpretação do Direito: método sistemático

Para uma abordagem completa do tema, recomendamos assistir ao nosso vídeo, A interpretação do Direito - parte I:



Os métodos de interpretação do Direito costumam vir nos manuais de processo sob o rótulo de "métodos de interpretação das leis processuais", embora cuidam da interpretação jurídica como um todo.

Faltar de interpretação no Direito implica a conclusão  de que o Direito exige interpretação, ou seja, assumir também a ideia de que é possível da mais de um sentido ao texto jurídico. Somente o juiz Hércules de Dworkin, em o Império do Direito, é capaz de sempre identificar a única resposta correta.

Como personagem fictício, de capacidade sobre-humana, por ser capaz de saber sempre a melhor resposta, então, Dworkin estabelece a ideia de que, sendo possível encontrar
a melhor resposta no Direito, o Direito exigiria uma única resposta. A resposta correta do Juiz Hércules. Portanto, a única resposta admissível no Direito seria a resposta correta.

Mas qual é de fato a melhor resposta? Sabemos que, pelo menos até o momento, é humanamente impossível assegurarmos que esta ou aquela corresponde à melhor (e única) resposta, pelo que acabamos, às vezes, num jogo de múltiplas respostas, igualmente razoáveis. Por isso a conclusão de que o Direito permite essa multiplicidade de sentidos.

Neste sentido, é interessante a Súmula 400 do Supremo Tribunal Federal (STF): "Decisão que deu razoável interpretação à lei, ainda que não seja a melhor, não autoriza recurso extraordinário pela letra "a" do art. 101, III, da Constituição Federal".

Quer dizer, não permite o Recurso Extraordinário, sob o fundamento de que a decisão recorrida não deu a melhor interpretação, desde que o fundamento seja razoável. Em outros termos, o STF permite a estabilização de uma interpretação que não seja a melhor interpretação, desde que razoável.

Diferente do juiz Hércules de Dworkin, que só aceita a única (melhor) resposta correta, para o Supremo Tribunal basta uma interpretação razoável para a estabilização da decisão.

Teoria objetivista x Teoria subjetivista (da interpretação)

Na teoria do Direito, ficou famosa a controvérsia entre a chamada teoria subjetivista e a teoria objetivista da interpretação. A teoria objetivista defende que se deve buscar o sentido do texto. Ao interpretar uma norma jurídica, busca-se saber o que o texto definitivamente está a dizer.

Enquanto que a teoria subjetivista defende a busca do espírito da lei, também chamada de intenção do legislador, a mens legislatoris. Ela está não preocupada especificamente com aquilo que diz o texto da norma, mas a intenção do que se quis transmitir. O que o legislador quis expressar quando estabeleceu essa norma.

A questão foi muito bem tratada por Margarida Lacombe, em Hermenêutica e Argumentação, ao explicitar que não se trata apenas de um confronto entre o espírito do legislador versus o sentido do texto. Mas uma oposição entre a autoridade do Poder Legislativo e a autoridade do Tribunal, sobre quem teria a última palavra sobre o texto da lei.

Vontade do legislador ou sentido do texto? Como tratamos na nossa Tese de Doutoramento, pensando o Direito como um teoria do código, pode-se dispensar a intenção do legislador, na medida em as normas podem ser analisadas numa relação lógica. Porém, sob a perspectiva de uma teoria da comunicação, em que a intenção do emissor da mensagem conta, a vontade de quem edita o texto torna-se relevante.


Todavia, o texto representa um elemento central, principalmente quando falamos de direito escrito (mas não só quando há texto escrito, na medida em que todos os signs são suscetíveis de interpretação).

Método Sistemático

Quanto aos métodos de interpretação propriamente dito, o que primeiro que normalmente se apresenta é o chamado método lógico-sistemático. Na ideia de que, ao se interpretar uma norma jurídica, deve-se considerá-la em sua sistematicidade lógica, de que está inserida em um ordenamento jurídico, em um sistema. E não de forma individual.


Neste sentido, podemos destacar o texto do art. 1º do Código de Processo Civil de 2015, ao estabelecer que o processo deve ser interpretado de acordo com os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição. Deixa clara a ideia de que há que se levar em conta a sistematicidade do Direito, inserida numa relação de validade e hierarquia com as demais normas. Em suma, não faz sentido, interpretar uma norma jurídica de maneira isolada, sem considerar que pertence a um sistema jurídico.

A interpretação do Direito é (sempre) sistemática.

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Processo, Guerra e Verdade: o nascimento do processo e seu fator ideológico

Caso não conheça o nosso canal no youtube, visite-nos lá para assistir o vídeo a respeito, com mais esclarecimentos e inscreva-se no nosso canal:


O nascimento do sistema processual não está isento de ideologias, principalmente vinculado à ideia do monopólio da violência pelo Estado, da reparação e da busca da verdade. Elementos que afetam sobremaneira os elementos formadores da concepção do processo, em qualquer dos seus ramos.

Para examinar esse processo de formação, que culmina na formatação do processo judicial, atrelado à noção de um procedimento que visa a verdade, sendo o juiz, sujeito imparcial, compromissado apenas com a descoberta da verdade e aplicação da lei, vamos nos remontar, inicialmente, ao Direito germânico de ainda antes da invasão pelo Império Romano, do modo como, resgatado de Tício, Michel Foucault nos explica, na Terceira Conferência de A Verdade e as Formas Jurídicas.

O Direito germânico antigo estava praticamente organizado pelo sistema de prova de duelo, como elemento central para solução dos litígios. Basicamente, o duelo é aquela disputa entre duas pessoas, em que um desafia o outro para uma prova. Muitas vezes as provas são de armas, provas de luta, outras vezes são também provas verbais. Neste caso, perdia quem errava, por exemplo, a dicção sobre uma determinada forma. Quem não conseguia dizer a forma correta, então, não tinha razão. Com relação ao duelo de armas, já se sabe, ganha quem vence a luta.

Temos caracterizada a primeira condição do duelo, "o Direito é, pois, uma maneira regulamentada de fazer a guerra" (Foucault, p. 56-57), mas uma guera entre duas pessoas. Assim, como a primeira característica, o duelo implica a necessidade de duas pessoas (que se duelam), sem a necessidade de uma terceira (o juiz), para a heterecomposição do processo.

A segunda condição é que o duelo, apesar de poder servir como um instrumento de vingança, não se resume a isto. Como explicamos no vídeo, o duelo se faz por determinado rito. Deste modo, já é uma espécie rudimentar de procedimento judiciário, porque tem uma forma. Neste sentido, é por sua forma é que se realiza a justiça.

Por fim, a terceira condição do duelo do direito germânico, como Foucault apresenta, é a transação. Quer dizer, as partes podiam colocar fim ao duelo mediante uma transação. Uma das partes poderia pedir a intervenção de um árbitro, com vista a mediar o conflito, fixando-se um valor para acabar com a disputa. É possível colocar fim aos duelos (imagine uma disputa interminável entre duas famílias, por exemplo), por meio de um resgate, uma transação que resgata a paz.

Mas o que é característico dessa terceira condição é que a transação não tem a finalidade indenizatória, não visa reparar o dano, mas resgatar o direito de ter paz, por parte de quem paga o resgate. Portanto, o duelo se constitui como uma prova de força que pode terminar por uma transação econômica.
"O Direito feudal é essencialmente do tipo germânico. Ele não apresenta nenhum dos elementos dos procedimentos de inquérito, de estabelecimento da verdade das sociedades gregas ou do inquérito romano" (Foucault, p. 58).

No Direito feudal, é o sistema a prova que regula o litígio entre os indivíduos, as famosas ordálias (dentre as quais inclui-se o duelo). E tem como caracterísitica central o fato de ser um sistema binário. E como tal, não se funda sobre um processo de verdade, é um sistema de força, que mede o peso de quem tem razão.

Por outro, o resultado não depende, como já o dissemos, de um terceiro imparcial. Mesmo quando há um juiz (mais tarde com o desenvolvimento desse processo), a figura desse terceiro serve apenas para testemunhar sobre a regularidade do processo.

Mas essa regulamentação, essa formalidade do processo probatório, como nos explica Michel Foucault, é um operador do Direito, uma espécie de "shifter", que serve para ritualizar e dar razão aos mais forte. Não necessariamente a quem tem razão, mas àquele que vence, de acordo com as regras (Cf. Foucault, p. 62).

Todas essas formas desaparecem no fim do Séc. XII e início do Sec. XIII. Mas o interessante é notar que, durante a Idade Média, a guerra é uma das formas mais fecundas de enriquecimento: a apropriação, a ocupação, a rapina. E o sistema judiciário, que ainda não é o Poder Judiciário, na forma como o conhecemos, hoje, é também uma forma de guerra. Uma guerra ritualizada, regulamentada, porém, que também justifica o enriquecimento. Logo, o Direito se torna do interesse da parte dominante. Esse shifter capaz de transformar a guerra em um processo legítimo de enriquecimento.

Assim, na Alta Idade Média, até a formação das monarquias medievais, dá-se a ruptura do sistema judiciário e aparece um personagem totalmente novo, no séc. XII: o procurador (Foucault, p. 65). O poder estatal vai se apropriar do Direito e a figura do procurador, enquanto representante do Estado, "dubla" o direito da vítima.

E junto com a figura do procurador, esse "dublador" das vítimas, nasce também a ideia de infração (Foucault, p. 66). Desse momento em diante, o dano não é mais só o dano ao indivíduo, mas a sociedade também é a vítima. Se antes, aquele que fosse vítima poderia duelar ou poderia conseguir, mediante uma transação, um determinado valor como resgate da paz, agora, o próprio Estado pode também se apropriar do infrator. A infração surge, não na ideia de resgatar a paz, mas como reparação do dano. Quando alguém comete um ilícito, não está mais afetando somente a vítima, e afeta o próprio Estado. O poder estatal, então, confisca o procedimento judiciário.

Temos a figura do procurador, que representa o monarca e ele vai atuar em todos os casos em que há infração. O problema é que esse sistema não se compatibiliza com a binariedade. Pois, e se o procurador agir e o monarca perder o processo? Vai também acabar com a sua vida, à moda do duelo? Em razão disso, a atuação do procurador precisa de um mecanismo diferenciado. Não um mecanismo mais binário, de dualidade.

Vai-se buscar, portanto, no direito germânico e também no direito do sistema feudal, o flagrante delito, instituto que já existia e atrelava o dano à coletividade. Ou seja, o flagrante delito já permitia que a coletividade, uma pessoa ou um grupo de pessoas, pudesse requerer a punição e a reparação do dano, ao pegar alguém cometendo um crime. Assim, apropria-se desse instituto a ideia de coletividade, enquanto parte lesada, para justificar a infração.

Mas como seria aplicável apenas aos casos de flagrante delito, traz-se um segundo elemento, o inquérito. Procedimento que já existia no direito grego e no direito romano, praticado também no Império Carolíngio e no direito eclesiástico. A inquisitio vai se estabelecer como o procedimento de busca da verdade, para aqueles casos em que não se sabe, pelo flagrante, quem é o autor da infração. 

Firma-se essa modelo de perguntas e respostas como o procedimento adequado para o estabelecimento da verdade, quer seja de perguntas e respostas dirigidas aos notáveis, como se fazia no Império Carolíngio, quer seja no modelo inquisitivo dos bispados. No caso da Igreja, por exemplo, é interessante, porque para auferir a verdade, o Bispo, chegando em determinada paróquia, realiza a inquisitio generale, perguntas e respostas sobre o que havia acontecido (o inquérito). Depois, a inquisitio especiale, com vista a identificar o culpado e apurar a culpa.

Assim, dá-se forma ao processo, enquanto esse procedimento inquisitivo, de perguntas e respostas, que encobre a finalidade de apropriação, forma pacificada de enriquecimento e se atrela à busca e compromisso, de originária natureza religiosa, da verdade.

Para uma explicação mais detalhada e que reforça os pontos explanados acima, assista ao vídeo e acompanhe o nosso canal no youtube:


sexta-feira, 17 de abril de 2020

Direito, Moral e Religião: o conceito de direito e suas relações com outras ordens sociais


Complemente o texto com o vídeo resumido e aproveite e inscreva-se no nosso canal:



Podemos definir o Direito como um sistema de normas de conduta social, em regra, impostas de modo coercitivo, com vista a regular institucionalmente a vida em sociedade. Neste conceito, colocamos em evidência quatro características importantes: é sistemático, normativo, institucionalizado e coercitivo.

É um sistema naquele sentido que Hans Kelsen já havia enfatizado, em Teoria Pura do Direito, ou seja, as suas normas devem ser consideradas numa relação, como um todo. Dito de outro modo, podemos dizer que o Direito forma uma composição de elementos. Um sistema de normas que pode ser delimitado em termos espaciais e temporais. Podemos, então, falar de um sistema jurídico de um tempo e/ou de um espaço. Assim é que falamos de um direito romano ou falamos de um direito francês, por exemplo. Neste sentido, é um sistema de normas que é influenciado pelo seu próprio ambiente e cuja estrutura e finalidade podem ser expressas por intermédio de uma função. 

Mas o Direito também é normativo, na medida em que é um conjunto de normas regulador do comportamento humano, ou seja, consitui um padrão de orientação e avaliação da conduta socia, como um guia àqueles que estão sujeitos a ele.

Por sua vez, é institucionalizado porque a sua aplicação e modificação são, de modo amplo e geral, realizadas e reguladas por instituições. Pelo menos no Direito monístico, aquele regulado formalmente pelo Estado, temos determinadas instituições responsáveis pela sua regulação e aplicação.

Por fim, é também coercitivo, conforme explica a doutrina, pelo fato de que, em último caso, a sua obediência e aplicação podem ser internamente garantidas pelo uso da força.

São elementos definidores importantes porque grande parte da diferença entre os teóricos do Direito se resume na diferença de interpretação que dão a essas características: um sistema normativo institucionalizado, cujas normas podem ser coertivamente impostas.

No tocante à diferença com a Religião, há na verdade muitos pontos, possibilitando-nos, inclusive, falar de um direito religioso, como acontecia na Antiguidade, na Idade Média ou ainda em alguns países.

No século XVIII, principalmente na França, começa a concretizar-se o movimento de separação entre o Direito e a Religião, dando início ao processo de laicização. Mas podemos remontar o início da separação às ideias de Hugo Grócio (séc. XVII), através de sua teoria do Direito Natural desvinculado de Deus. Como afirmava:
"O Direito Natural existiria, mesmo que Deus não existisse ou, existindo, não cuidasse dos assuntos humanos".
Uma das diferenças que a doutrina apresenta entre o Direito e a Religião é a alteridade. Quer dizer que a Religião prescinde da alteridade. O homem religioso pode sê-lo mesmo sozinho, enquanto que o Direito só faz sentido numa relação do Eu com um Outro.

Acredito ainda que uma diferença crucial está na validade das normas religiosas e sua dimensão hermenêutica. A norma religiosa, por espelhar a vontade de Deus é incontestável e as proposições apresentadas pelas autoridades religiosas podem se beneficiar desse "incontestável" argumento da autoridade, limitando-se a sua exegese à simples e pura vontade de Deus ou do líder religioso.

Com relação à diferença entre Direito e Moral, também neste caso temos dois são sistemas de normas sociais. Mas se, de certo modo, podemos dizer que a Religião é a relação do homem sozinho, com o seu Deus. Teoricamente sem a presença de um outro. A Moral, como o Direito, requer a presença de um Outro para que tenha razão de ser. Não tem cabimento afirmar que a Moral é a norma do homem para com ele mesmo.

Na Teoria Pura de Kelsen, Direito e Moral se diferenciam na forma como prescrevem ou proíbem uma certa conduta. Enquanto o Direito é um sistema de normas com atos de coerção socialmente organizados, a Moral apenas aprova ou desaprova uma determinada conduta por ela regulada (sem uma coerção socialmente organizada).

Para Kelsen, portanto, há uma relação formal de identidade entre o Direito e Moral, ou seja, ambos são um sistema de normas sociais que prescrevem, com caráter de dever-ser uma determinada conduta. Mas a relação entre os dois é apenas de forma. Quer isto dizer, na concepção de Kelsen, que o Direito não depende de um conteúdo moral. Por isso ele rejeita a teoria do Mínimo Ético. Kelsen rejeita a ideia de que o Direito deve possuir um mínimo de Moral para ser justo ou válido. O Direito independente de qualquer concordância ou discordância com um sistema Moral.

Esta é uma concepção que pode ser contraposta à tese da coerência, nas suas variantes atribuídas a Ronald Dworkin, a de que a identificação do Direito incorpora um conjunto de princípios que integram a melhor justificativa moral e global de suas normas.

Assista ao vídeo e complemente o texto acima: Direito, Moral e Religião

sábado, 4 de abril de 2020

Princípio da Consumação e Princípio da Complementariedade no Processo Civil

Para uma explicação mais completa e didática, assista ao vídeo no nosso canal (e inscreva-se para receber novos vídeos):



De acordo com o princípio da consumação, a parte recorrente não pode, depois de interpor um recurso, substitui-lo por outro, mesmo estando no prazo. É que, uma vez manejado o recurso, ocorre a preclusão consumativa. Consuma-se o ato recursal e não é mais possível repetir o recurso (com uma nova interposição).

Porém, caso venha a ocorrer a modificação da decisão (modificação da sentença, por exemplo), por causa da procedência dos embargos declaratórios da outra parte, o recorrente embargado pode complementar ou alterar as razões do seu recurso (já interposto), no prazo de 15 dias, a contar da nova intimação. O princípio da complementariedade, portanto, uma vez que não se pode repetir o recurso já interposto (preclusão consumativa), permite a alteração posterior do recurso, nos termos do § 4º do art. 1.024 do novo CPC brasileiro.

O vídeo traz uma explicação mais detalhada e exemplificada. Assista: https://youtu.be/R96_9-_j_gg


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