quarta-feira, 6 de maio de 2020

Processo, Guerra e Verdade: o nascimento do processo e seu fator ideológico

Caso não conheça o nosso canal no youtube, visite-nos lá para assistir o vídeo a respeito, com mais esclarecimentos e inscreva-se no nosso canal:


O nascimento do sistema processual não está isento de ideologias, principalmente vinculado à ideia do monopólio da violência pelo Estado, da reparação e da busca da verdade. Elementos que afetam sobremaneira os elementos formadores da concepção do processo, em qualquer dos seus ramos.

Para examinar esse processo de formação, que culmina na formatação do processo judicial, atrelado à noção de um procedimento que visa a verdade, sendo o juiz, sujeito imparcial, compromissado apenas com a descoberta da verdade e aplicação da lei, vamos nos remontar, inicialmente, ao Direito germânico de ainda antes da invasão pelo Império Romano, do modo como, resgatado de Tício, Michel Foucault nos explica, na Terceira Conferência de A Verdade e as Formas Jurídicas.

O Direito germânico antigo estava praticamente organizado pelo sistema de prova de duelo, como elemento central para solução dos litígios. Basicamente, o duelo é aquela disputa entre duas pessoas, em que um desafia o outro para uma prova. Muitas vezes as provas são de armas, provas de luta, outras vezes são também provas verbais. Neste caso, perdia quem errava, por exemplo, a dicção sobre uma determinada forma. Quem não conseguia dizer a forma correta, então, não tinha razão. Com relação ao duelo de armas, já se sabe, ganha quem vence a luta.

Temos caracterizada a primeira condição do duelo, "o Direito é, pois, uma maneira regulamentada de fazer a guerra" (Foucault, p. 56-57), mas uma guera entre duas pessoas. Assim, como a primeira característica, o duelo implica a necessidade de duas pessoas (que se duelam), sem a necessidade de uma terceira (o juiz), para a heterecomposição do processo.

A segunda condição é que o duelo, apesar de poder servir como um instrumento de vingança, não se resume a isto. Como explicamos no vídeo, o duelo se faz por determinado rito. Deste modo, já é uma espécie rudimentar de procedimento judiciário, porque tem uma forma. Neste sentido, é por sua forma é que se realiza a justiça.

Por fim, a terceira condição do duelo do direito germânico, como Foucault apresenta, é a transação. Quer dizer, as partes podiam colocar fim ao duelo mediante uma transação. Uma das partes poderia pedir a intervenção de um árbitro, com vista a mediar o conflito, fixando-se um valor para acabar com a disputa. É possível colocar fim aos duelos (imagine uma disputa interminável entre duas famílias, por exemplo), por meio de um resgate, uma transação que resgata a paz.

Mas o que é característico dessa terceira condição é que a transação não tem a finalidade indenizatória, não visa reparar o dano, mas resgatar o direito de ter paz, por parte de quem paga o resgate. Portanto, o duelo se constitui como uma prova de força que pode terminar por uma transação econômica.
"O Direito feudal é essencialmente do tipo germânico. Ele não apresenta nenhum dos elementos dos procedimentos de inquérito, de estabelecimento da verdade das sociedades gregas ou do inquérito romano" (Foucault, p. 58).

No Direito feudal, é o sistema a prova que regula o litígio entre os indivíduos, as famosas ordálias (dentre as quais inclui-se o duelo). E tem como caracterísitica central o fato de ser um sistema binário. E como tal, não se funda sobre um processo de verdade, é um sistema de força, que mede o peso de quem tem razão.

Por outro, o resultado não depende, como já o dissemos, de um terceiro imparcial. Mesmo quando há um juiz (mais tarde com o desenvolvimento desse processo), a figura desse terceiro serve apenas para testemunhar sobre a regularidade do processo.

Mas essa regulamentação, essa formalidade do processo probatório, como nos explica Michel Foucault, é um operador do Direito, uma espécie de "shifter", que serve para ritualizar e dar razão aos mais forte. Não necessariamente a quem tem razão, mas àquele que vence, de acordo com as regras (Cf. Foucault, p. 62).

Todas essas formas desaparecem no fim do Séc. XII e início do Sec. XIII. Mas o interessante é notar que, durante a Idade Média, a guerra é uma das formas mais fecundas de enriquecimento: a apropriação, a ocupação, a rapina. E o sistema judiciário, que ainda não é o Poder Judiciário, na forma como o conhecemos, hoje, é também uma forma de guerra. Uma guerra ritualizada, regulamentada, porém, que também justifica o enriquecimento. Logo, o Direito se torna do interesse da parte dominante. Esse shifter capaz de transformar a guerra em um processo legítimo de enriquecimento.

Assim, na Alta Idade Média, até a formação das monarquias medievais, dá-se a ruptura do sistema judiciário e aparece um personagem totalmente novo, no séc. XII: o procurador (Foucault, p. 65). O poder estatal vai se apropriar do Direito e a figura do procurador, enquanto representante do Estado, "dubla" o direito da vítima.

E junto com a figura do procurador, esse "dublador" das vítimas, nasce também a ideia de infração (Foucault, p. 66). Desse momento em diante, o dano não é mais só o dano ao indivíduo, mas a sociedade também é a vítima. Se antes, aquele que fosse vítima poderia duelar ou poderia conseguir, mediante uma transação, um determinado valor como resgate da paz, agora, o próprio Estado pode também se apropriar do infrator. A infração surge, não na ideia de resgatar a paz, mas como reparação do dano. Quando alguém comete um ilícito, não está mais afetando somente a vítima, e afeta o próprio Estado. O poder estatal, então, confisca o procedimento judiciário.

Temos a figura do procurador, que representa o monarca e ele vai atuar em todos os casos em que há infração. O problema é que esse sistema não se compatibiliza com a binariedade. Pois, e se o procurador agir e o monarca perder o processo? Vai também acabar com a sua vida, à moda do duelo? Em razão disso, a atuação do procurador precisa de um mecanismo diferenciado. Não um mecanismo mais binário, de dualidade.

Vai-se buscar, portanto, no direito germânico e também no direito do sistema feudal, o flagrante delito, instituto que já existia e atrelava o dano à coletividade. Ou seja, o flagrante delito já permitia que a coletividade, uma pessoa ou um grupo de pessoas, pudesse requerer a punição e a reparação do dano, ao pegar alguém cometendo um crime. Assim, apropria-se desse instituto a ideia de coletividade, enquanto parte lesada, para justificar a infração.

Mas como seria aplicável apenas aos casos de flagrante delito, traz-se um segundo elemento, o inquérito. Procedimento que já existia no direito grego e no direito romano, praticado também no Império Carolíngio e no direito eclesiástico. A inquisitio vai se estabelecer como o procedimento de busca da verdade, para aqueles casos em que não se sabe, pelo flagrante, quem é o autor da infração. 

Firma-se essa modelo de perguntas e respostas como o procedimento adequado para o estabelecimento da verdade, quer seja de perguntas e respostas dirigidas aos notáveis, como se fazia no Império Carolíngio, quer seja no modelo inquisitivo dos bispados. No caso da Igreja, por exemplo, é interessante, porque para auferir a verdade, o Bispo, chegando em determinada paróquia, realiza a inquisitio generale, perguntas e respostas sobre o que havia acontecido (o inquérito). Depois, a inquisitio especiale, com vista a identificar o culpado e apurar a culpa.

Assim, dá-se forma ao processo, enquanto esse procedimento inquisitivo, de perguntas e respostas, que encobre a finalidade de apropriação, forma pacificada de enriquecimento e se atrela à busca e compromisso, de originária natureza religiosa, da verdade.

Para uma explicação mais detalhada e que reforça os pontos explanados acima, assista ao vídeo e acompanhe o nosso canal no youtube:


Nenhum comentário:

Postar um comentário

Participe, Comente nossos posts!.
Seu comentário tem valor para nós.

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...